A Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME vem a público manifestar-se sobre a Carta Aberta do Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena, veiculada neste mês de dezembro do corrente ano.
Primeiramente, gostaríamos de recuperar importantes aspectos históricos referentes à constituição e consolidação da Política, do Subsistema, e da Secretaria Especial de Saúde Indígena.
Desde a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em 1967, diferentes instituições e órgãos governamentais ficaram a frente da responsabilidade pelo atendimento à saúde dos povos indígenas, atendimento este que sempre esteve longe de ser satisfatório. Em 1999, com a “Lei Arouca” (n° 9.836), a gestão da saúde indígena voltou para o Ministério da Saúde, a quem incumbe a responsabilidade de estabelecer as políticas e diretrizes para a promoção, prevenção e recuperação da saúde indígena. As ações passaram a ser executadas pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Com a criação e implementação dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI’s), os serviços de atenção básica à saúde e prevenção começaram a ser executadas em todo Brasil, através da estratégia de descentralização de recursos via convênios, firmados com organizações da sociedade civil – associações indígenas e indigenistas – e algumas administrações municipais. O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena vinculado diretamente ao Sistema Único de Saúde, então regido pela Funasa, passou a ser alvo de graves denúncias de corrupção e deficiências no atendimento.
É fundamental recordarmos que a partir daí, o movimento indígena iniciou uma luta muito intensa para que a gestão da saúde indígena passasse para a responsabilidade de uma secretaria específica, diretamente ligada ao Ministério da Saúde. Em 2010, essa histórica reivindicação dos povos indígenas foi atendida com a criação da Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI) que, ligada diretamente ao Ministério da Saúde, assumiu a responsabilidade de gerenciar todo o subsistema no país. Portanto, a conquista da SESAI é fruto de uma mobilização dos povos indígenas do Brasil. Nasceu após meses de discussões e pactuações dialogadas entre gestores e lideranças indígenas no grupo de trabalho criado, à época, pelo próprio governo federal. Este extenso trabalho culminou em cinco grandes seminários regionais por todo o país, que promoveram escuta e debate com diversos povos e lideranças indígenas, com resultado coletivamente aprovado num amplo processo de consulta popular. Importante lembrarmos, inclusive, que recentemente, toda essa conquista sofreu ameaça de retrocessos, ante indicativos de municipalização da saúde indígena, o que implicaria em evidente e inaceitável desastre para os povos indígenas.
Como forma aperfeiçoar subsistema e a política, dotando-os de características inerentes ao modelo proposto pelo SUS para as políticas de saúde: caráter participativo e submissão ao controle social, foram criados, ainda, os Conselhos Distritais de Saúde Indígena – CONDISI’s. Esses Conselhos tem como atribuições, estabelecer as diretrizes e fiscalizar a execução das ações de saúde dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, atuando assim, como verdadeiras instâncias de participação e controle social da política pelos próprios usuários dos serviços (indígenas).
Nós sabemos o quanto foi e continua sendo relevante a instituição do Fórum dos Presidentes de CONDISI’s, e reconhecemos as grandes mobilizações e vitórias conquistadas com a participação de cada um dos parentes que compõem essa instância, em busca da melhoria dos serviços públicos de saúde indígena em todo país. Assim, a ocupação desse espaço também significa uma importante conquista para os nossos Povos. Mas sobretudo, significa uma enorme responsabilidade para os que ocupam suas cadeiras, uma vez que representam seus próprios parentes, e os seus e demais povos da área de abrangência do respectivo DSEI.
Sendo assim, é natural e importante, que hajam diálogos e convergências entre os objetivos gerais defendidos pelos representantes indígenas dos CONDISI’s e aqueles defendidos pelo movimento indígena, uma vez que esses objetivos visam garantir o direito dos povos originários a serviços públicos de saúde de qualidade, respeitosos e atentos às especificidades dos povos em razão de nossas diversidades culturais.
De outro lado, é importantíssimo ressaltar sempre que a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME, é uma Organização atuante do movimento indígena do Brasil, e é também uma Organização regional de base da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB. A APIB é formada por organizações indígenas de todas as regiões do país, dentre as quais se insere a APOINME. Sendo assim, estamos juntos, articulando e cooperando em processos de lutas que o movimento indígena vem historicamente travando em defesa da vida, dos territórios e direitos de nossos povos em nosso país. Bom enfatizar também que essas ações e lutas do movimento indígena se dão historicamente em contextos que, ao longo de séculos, tentam nos invisibilizar, calar, violentar, e nos excluir de projetos de sociedade de setores que defendem interesses que conflitam com nossos direitos. Sendo assim, consideramos fundamental a nossa ação como parte da atuação do movimento indígena nacional.
Inclusive, e a propósito deste tema, destacamos a relevância da iniciativa adotada pelo movimento indígena como forma de enfrentar a Pandemia de Covid-19 dentre nossos povos e territórios em todo o país.
Na esteira e como parte do Plano Emergência Indígena (de abrangência nacional) desenvolvido pela APIB, e procurando se somar a essa iniciativa, a APOINME, lançou o Plano Promoção e Defesa da Vida e Saúde dos Povos e Territórios Indígenas no NE, MG e ES. O objetivo central dos Planos nacional e regionais, foi colocar em movimento uma mobilização das Organizações do movimento indígena no sentido de proteger a vida e saúde dos povos e territórios originários. Protagonizado pelas próprias Organizações do Movimento Indígena ligadas à APIB (APOINME, ARPINSUL, ATY GUASSU, COIAB, CONSELHO TERENA, COMISSÃO GUARANI YVYRUPA), o Plano implementou um conjunto de ações voltadas a evitar o aumento da disseminação da doença, contribuir para a promoção e atenção diferenciada e efetiva à saúde de indígenas infectados pelo vírus, fortalecer e valorizar as práticas tradicionais de saúde de cada Povo, ofertar mecanismos para evitar situações de insegurança alimentar dentre as comunidades, e cooperar com as comunidades na proteção de seus territórios.
Nesse caminho, e em cooperação, nós as Organizações da APIB, buscamos empreender nossos melhores esforços promovendo uma grande captação de recursos, e uma distribuição destes para que nossos parentes tivessem condições melhores de enfrentar esse cenário catastrófico imposto pela Pandemia. Dessa forma, comunidades de todas as regiões do Brasil foram atendidas em suas demandas emergenciais agravadas pela Pandemia, com recursos provenientes da iniciativa dessas Organizações articuladas na APIB.
Essa ação começou a ser realizada quando percebemos que os números de casos de infecção e óbitos dentre nossos Povos estavam subindo muito, e que a eficácia da ação dos órgãos indigenistas do Estado era morosa e insuficiente na oferta de proteção e cuidados efetivos para com nossa saúde e vidas. Agimos de forma a tentar contribuir com a oferta de respostas a comunidades que se encontravam em estado de necessidade e sem acesso a serviços essenciais.
Apenas a título exemplificativo, citamos alguns dos insumos e equipamentos distribuídos dentre as Microrregiões da APOINME para contribuir com o fortalecimento da saúde e segurança alimentar de nossas comunidades durante a Pandemia:
Água sanitária; Barras de sabão; Unidades de sabonete; Sabão em pó; Litros de álcool gel; Cestas básicas; Termômetros; Oxímetros; Faceshields; Sementes para plantio ; Máscaras; Luvas; Detergente Faixas e carro de som para difusão de informações e orientações sobre como eviatar a infecção; Papel toalha; Litros de água sanitária; Utensilhos de cozinha; Lanternas; Capas de chuva; Capotes; Bombas costais manuais; Atomizadores costais; Testes de Covid-19; Análises de testes Covid-19; Serviços de reparos em ambulância de DSEI; Sacos de milho; Sacos de feijão; Frango congelado; Cebola; Tomate; Sacos de laranja; Caixas de ovos; Embutidos; Carne; Kits de higiene; Macacão de proteção impermeável; Máscaras protetoras de TNT; Toucas; Sacos de cimento; Tubos e mangueiras; Caixa d’agua; Kits de ferramentas e insumos para hortas comunitárias; etc…
Além disso, tanto a APOINME como as demais Organizações da APIB realizaram diversas articulações com Estados e Municípios para fortalecer uma rede de apoio aos povos indígenas de suas respectivas regiões, iniciativa que também produziu resultados importantes no atendimento a demandas de parentes junto a órgãos locais. Ainda é preciso destacar a enorme e pioneira ação desenvolvida pelas Organizações Indígenas e parceiras junto aos Poderes Legislativo (por meio do Gabinete da Deputada Joênia Wapitchana) e Judiciário (com julgamento de uma ADPF favorável à melhoria das condições de atendimento à saúde dos povos indígenas).
Por fim e diante de tudo que foi aqui tratado, pedimos a todas e todos os parentes que compreendam essa ação como resultado de uma iniciativa cooperada entre todas das Organizações que compõem a APIB (da qual a APOINME é parte), e que procurem refletir, sobretudo em um momento tão difícil em todo o mundo, sobre a importância e a necessidade de somarmos esforços no rumo da defesa de nossas vidas e territórios, e pela garantia e implementação de nossos direitos. Não temos um pensamento único a respeito de todos os assuntos, mas pontuais divergências sobre questões acessórias devem ser discutidas entre nós com maturidade, respeito e franqueza, e com o compromisso inabalável de buscar consensos em favor do bem coletivo maior, que é a concretização dos direitos de nossos povos indígenas no Brasil, direitos esses que constituem ferramentas indispensáveis para que possamos manter vivos os nossos corpos, os nossos territórios, os nossos espíritos, e as nossas culturas. A gente tem que lembrar que os objetivos de nossos Povos convergem com a agenda de luta do movimento indígena.
Por isso, vamos realçar sempre o fato de que unidos somos capazes de fortalecer as nossas lutas e as nossas conquistas.
Recife, 22 de dezembro de 2020
APOINME